Entrevista: Marcela Cantuária fala sobre os projetos realizados em parceria com o Inclusartiz
Atualmente em cartaz no Sesc Pompeia com a exposição individual Propostas de Reencantamento, artista carioca relembra os quatro projetos que realizou com o instituto este ano
Em outubro deste ano, a artista carioca Marcela Cantuária abriu ao público no Sesc Pompeia, em São Paulo, a exposição individual Propostas de Reencantamento, integrante do projeto Ofício: Mancha. A mostra conta com duas obras desenvolvidas no Centro Cultural Inclusartiz em setembro, como parte da nossa programação de open-studios: “Fogueira doce” e “Uma proposta para o reencantamento”. Durante as duas semanas de produção das pinturas, a equipe do instituto e os nossos visitantes puderam acompanhar de perto a realização dos trabalhos, que encantam por sua grandiosidade e riqueza de detalhes.
“Eu pude usar o espaço do ateliê na Gamboa para realizar duas obras de grande tamanho, em escala não doméstica. Isso para mim é algo muito valioso, porque posso desenvolver mais os personagens e até mesmo a pesquisa”, conta.
Este é o quarto momento em que a sua produção se cruza com o Inclusartiz. No começo deste ano, o instituto a convidou a pintar muros e fachadas nas principais ruas da cidade de Cajueiro da Praia, no litoral do Piauí, como parte de uma iniciativa que teve como objetivo chamar a atenção para a preservação do peixe-boi, símbolo da região. Já em fevereiro, sua obra inédita “A invocação do passado na velocidade do agora” fez parte do circuito da ARCO, Feira Internacional de Artes de Madri. Criada especialmente para o evento, a pintura ficou exposta no CentroCentro, espaço cultural situado no Palácio de Cibeles, sede da Câmara Municipal da capital espanhola, onde Cantuária esteve em residência artística promovida em parceria com o Inclusartiz.
Este ano, a artista ainda integrou a primeira edição do Clube dos 25 – programa de aquisição de obras de arte contemporânea lançado em comemoração pelos 25 anos do instituto – com o conjunto de desenhos “O eterno retorno”, ao lado de outros quatro artistas que fazem parte da nossa história.
Confira a entrevista completa abaixo.
A sua parceria com o Instituto Inclusartiz começou no início deste ano, quando você foi convidada a desenvolver o projeto de preservação ambiental Murais – Caju e Manatí, no litoral do Piauí, que contou também com a participação ativa de moradores da região. Como foi a realização deste trabalho?
Foi uma experiência muito agregadora, no sentido de ver a arte por um prisma de coletivo, algo que pode ser feito por muitas mãos e, sobretudo, junto da comunidade local. Então para mim foi uma experiência muito enriquecedora. Tivemos trocas, não só com os participantes das oficinas, que no caso foram as crianças da região, mas também com as mães, com a parte mais governamental, e com apoio total de todos. A gente foi muito bem articulado. É uma forma também de usar a arte para conscientização de assuntos ambientais. Para mim foi um dos projetos mais legais que já fiz com o instituto. Foi incrível.
Este ano, você também passou uma temporada em residência artística na Espanha, que culminou na sua participação na ARCO, Feira Internacional de Artes de Madri. Como você avalia essa experiência internacional?
Para mim foi superimportante, porque na minha pesquisa eu costumo trabalhar a história dos povos partindo de uma perspectiva materialista, que seria entender a situação da população, quais são as suas condições materiais, quem manda e quem obedece. Então por estar em Madri, pensando numa perspectiva materialista, eu pude enxergar as relações de poder que a Europa tem sobre o continente americano, mais propriamente a América Hispânica, então para mim foi fundamental para entender essas questões, entender de onde que veio o epicentro desse poder. Eu avalio superbem qualquer experiência internacional, porque me bota em contato com outra cultura, com outros idiomas, então é um exercício também da minha criatividade e de uma leitura do mundo, né? Os olhos precisam ler o mundo e isso ao vivo é uma outra experiência, ainda mais lá na Europa onde a gente vê a história da arte e o velho continente. Para mim foi importante, como uma estudante de pintura, poder estar ali sem nenhum filtro, vendo as obras que eu conheci através de livros durante a faculdade.
Mais recentemente, o Inclusartiz te convidou a integrar o Clube dos 25. Como foi receber este convite?
Tudo que tange a ideia de múltiplo para mim é um desafio, então quando eu recebi esse convite não sabia direito como responder. No final das contas acabei aceitando porque foi uma ótima oportunidade de mostrar uma produção muito antiga minha, de pelo menos dez, doze anos atrás, que eu desenvolvi bem no início da faculdade com meus cadernos quando ainda não tinha como pintar grandes telas. Eu usava muito caderno e eles viviam comigo para cima e para baixo. Foi muito importante porque na verdade eu me senti como se estivesse abrindo um diário. É uma coisa bem íntima. Minhas referências que se repetem hoje e que continuam dentro de mim ganharam talvez mais musculatura – não sei dizer –, mas foi superimportante trabalhar a ideia do eterno retorno, essa coisa de voltar para casa. É como se aqueles cadernos tivessem início, meio e fim. Eles condensam muito do meu inconsciente ali. Foi superlegal porque quem só conhece o meu trabalho mais recente, de 2018 para cá, que foi quando expus no MASP, nunca viu os meus cadernos, né? Foi interessante para o pessoal ver o trabalho que tem por trás, que é algo que tem mais corpo do que a gente imagina.
Em outubro, você inaugurou a exposição individual Propostas de Reencantamento em São Paulo. Fale um pouco sobre o desenvolvimento da mostra. Como surgiu o convite para expor no Sesc Pompeia?
Eu recebi esse convite em 2019 através da Bárbara Iara, a responsável pela educação e os projetos do Sesc. Ela viu a exposição no Hélio Oiticica, se encantou com o trabalho e me convidou, mas aí veio a pandemia e tudo ficou meio suspenso. O convite foi reforçado pelo Inclusartiz, através de um jantar promovido pela Frances Reynolds, em que sentamos com a Bárbara Reis, uma influencer dentro do Sesc. Ali amarramos o projeto. Foi importante porque eu me senti apoiada, acho que seria algo que que demoraria mais pra acontecer se não fosse com a ajuda de um instituto. Até porque a forma como ocorreu também foi muito importante para mim, porque eu pude usar o espaço do ateliê na Gamboa (sede do Inclusartiz no Rio de Janeiro) para realizar duas obras de grande tamanho, em escala não doméstica. Isso para mim é algo muito valioso, porque posso desenvolver mais os personagens e até mesmo a pesquisa. Eu contei com o apoio do instituto para me reaproximar do Sesc Pompeia e para ter um espaço de ateliê para realizar duas obras das sessenta que estão expostas.
Como você comentou, dois dos trabalhos presentes nessa nova exposição foram produzidos no espaço do Centro Cultural Inclusartiz. Como foi a experiência de criar em um ateliê aberto com acompanhamento do público?
Foi interessante porque é muito gostoso pintar lá, é um espaço ótimo, é lindo, e você se sente bem. O público também é muito gentil, generoso, e eu sou uma artista que gosta de estar em contato com o público. Para mim é sempre um prazer, foi ótimo.
Estes dois trabalhos – “Fogueira doce” e “Uma proposta para o reencantamento” – são pinturas em larga escala que retratam e homenageiam mulheres importantes para a história política e cultural da América Latina. O que eles representam?
Em “Fogueira doce” eu trouxe a imagem de duas lideranças que lutaram pela causa ambientalista, a Marli Medeiros e a Berta Cáceres. A Marli Medeiros é brasileira, de Porto Alegre, e foi uma mulher negra que lutou junto a mulheres subjugadas pelos traficantes de drogas da região, da vila onde elas moravam. A Marli organizou essas mulheres, criou a maior fábrica de reciclagem do sul e virou um ponto de referência. A partir dessa união entre elas, desse senso de comunidade que foi formado, criaram creches e escolinhas, tudo para os filhos delas. Foi algo muito bonito.
Já a Berta Cáceres é autora da frase escrita no pé da pintura: “Não há outra alternativa para nós a não ser lutar”. É a segunda vez que eu retrato a Berta, que foi uma liderança do povo Lenca, em Honduras. Ela embarreirou a chegada da empresa Siemens no território dela, porque poluiria muitos rios e também é um traço de racismo ambiental que os povos da América do Sul, América Central e de outros lugares do mundo sofrem. A Berta Cáceres é uma figura muito cara para mim. Ela tem uma história de vida realmente muito inspiradora. Ela fundou o COPINH, o Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras, e foi brutalmente assassinada com a cobertura do governo hondurenho por conta desse bloqueio que eles fizeram contra a Siemens. No final das contas, a caneta que conta é dos poderosos, mas a Berta foi até o final e assassinaram ela um dia antes de seu aniversário, na porta de casa.
Até hoje não se sabe quem a matou. Enfim, é um caso bem parecido com o da Marielle. Eu lembro que quando soube da história da Berta, pensei muito na Marielle Franco e como essas histórias se repetem. Eu escolhi botar as duas acima da pintura olhando para baixo, para um grupo que se reúne em volta da fogueira. A ideia era trazer uma imagem de coletividade, de acolhimento. E essas mulheres são as guias para iluminarem o nosso caminho.
O curador Aldones Nino vem acompanhando de perto o seu trabalho desde o início da sua parceria com o instituto e tem papel importante no desenvolvimento dos projetos citados acima. Como se dá essa relação artista-curador?
A minha relação com o Aldones precede a parceria com o instituto. Além de uma amizade, é também alguém que eu respeito muito, pelas suas ideias, pela forma como elabora pensamentos sobre pintura, sobre arte, história da arte. É alguém que caminha comigo há bastante tempo. Essa relação se dá através de trocas de referências. Se tem alguma história ou alguma imagem que me chama a atenção, eu levo para ele, que me devolve com outra perspectiva ou somando mais informações. A própria exposição que se deu em Madri, eu devo muito a ele. O fato de ele ter estudado história foi um suporte muito grande para mim, de pesquisa, da história das Américas, da Rainha Isabel, a expansão marítima… Enfim, muito dessa troca se deu através do Aldones. Conto com ele já há muitos anos e pretendo continuar contando.
Quais são os seus próximos passos? Tem algum projeto em vista ainda este ano? O que está planejando para 2023?
Em 2023 eu tenho uma exposição individual no Pérez Art Museum, aqui em Miami, de onde eu estou falando, em março. Também tenho alguns projetos ainda em aberto.