Voz ativa do movimento negro, Yhuri Cruz se destaca como um dos principais artistas contemporâneos do Brasil
Confira entrevista com o artista carioca que atraiu mais de 200 pessoas ao Centro Cultural Inclusartiz durante a performance “Negrociação #1”, parte da exposição “Gamboa: nossos caminhos não se cruzaram por acaso”
Um dos destaques da exposição “Gamboa: nossos caminhos não se cruzaram por acaso” – em cartaz no Centro Cultural Inclusartiz até o dia 31 de julho –, o artista visual e escritor Yhuri Cruz vem conquistando cada vez mais espaço na cena da arte contemporânea brasileira. O carioca de 30 anos, nascido em Olaria mas com fortes ligações com a região da Gamboa – bairro onde sua família morou até a década de 1950 e local em que hoje ele vive e trabalha –, desenvolve a sua prática artística a partir de configurações poéticas entre o fantasmagórico e o real, buscando dar conta do que denomina como memórias subterrâneas e da necropolítica como plano neocolonial.
Nesta entrevista, Yhuri fala sobre a sua trajetória, sua visão de mundo e da sua última intervenção artística: a cena “Negrociação #1 – Minha língua está em sua boca e eu a quero de volta”, parte de sua pesquisa intitulada “Pretofagia”, que reuniu mais de 200 pessoas no Centro Cultural Inclusartiz no dia 18 de junho.
Você se formou em ciências políticas antes de se tornar artista, foi o caminho inverso ou foram coisas simultâneas? Você sempre quis ser artista? Nos conte um pouco sobre a sua trajetória nas artes visuais.
A minha trajetória nas artes visuais se deu da seguinte forma: em 2009, eu tinha muita dúvida entre seguir a carreira diplomática ou seguir a carreira artística. Ainda com dezessete anos, optei por seguir a carreira diplomática. Passei na UniRio no curso de ciências políticas, mas durante a faculdade eu percebi que o meu caminho na verdade deveria ser artístico. Eu tive um professor, numa disciplina chamada Literatura e Política, que mudou a minha vida e foi o mais próximo de arte e política que eu consegui estudar na graduação. Em 2012, quando eu me formei em ciências políticas, o meu trabalho de conclusão de curso foi sobre esse tema, mais focado em teatro e política, em que eu analiso uma peça chamada “O Inimigo do Povo”, do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen. Daí em diante, comecei a fazer cursos livres de arte, então, embora eu não tenha uma formação acadêmica de arte universitária, tenho uma formação livre de arte, digamos assim. Fiz cursos de pintura, desenho, além de cursos teóricos de psicanálise, teatro, literatura, cinema. Tenho também uma pós-graduação em jornalismo cultural. Enfim, diversas outras áreas, além da arte contemporânea propriamente dita. Através desses cursos livres eu começo a entrar no circuito. Eu me integro à cena de arte contemporânea no Rio de Janeiro principalmente por meio dessas cenas paralelas, a acadêmica e a universitária.
Quem o inspira hoje e serviu de referência ao longo de sua trajetória, seja nas artes visuais, na música, na literatura, dramaturgia ou em qualquer outra forma de expressão cultural?
Eu tenho várias inspirações. Por não ter uma formação universitária em arte, elas são um pouco fora da curva porque eu sou muito ligado em literatura, teatro, cinema e quadrinhos de ficção de forma geral. Eu acho que a minha formação artística está muito ligada à ficção. O texto ficcional é uma fonte de inspiração para o que eu faço. Hoje em dia, tudo que faço eu escrevo antes. Tenho muitos materiais escritos sobre a minha própria produção e eles acabam informando a produção visual. A maioria dos objetos que eu produzo, como as Cenas Pretofágicas, tem textos por trás. Na maioria das vezes são criados antes dos objetos em si. A literatura é uma forma de criação muito libertadora. Escrever é muito libertador porque não há limitação material, basta um papel e uma caneta. E eu não preciso ser rico, eu não preciso ter, sabe? Basta realmente tempo e dedicação ao papel e as palavras. Em relação aos artistas, têm alguns que me acompanham, como o Abdias de Nascimento. Ele é uma liderança política do movimento negro, foi também pintor, ator. Ele me acompanha num lugar muito especial, sou muito fã. Me inspiro também em nomes internacionais, como a Carrie Mae Weems, que além de artista visual é também dramaturga, e em cineastas, como o Jordan Peele. Sou muito inspirado pelo movimento negro radical dos Estados Unidos nos anos 1960, 1980 e 1990, e pelo movimento negro radical aqui no Brasil também.
A entrada da cantora e atriz Linn da Quebrada no “BBB” 22 com a camiseta que você criou, estampando uma de suas obras mais emblemáticas, a “Anastácia Livre”, ganhou muito espaço na imprensa e nas mídias sociais na época do acontecimento. Você esperava tanta repercussão?
Eu esperava muita repercussão, sim. O nome do trabalho é, na verdade, “Monumento à voz de Anastácia”, mas ele é conhecido publicamente como “Anastácia Livre”. Ele é um monumento. Então, desde o início do trabalho, que foi feito lá em 2019, eu já sabia que era monumental na sua potência e devia ser monumental na sua escala de distribuição de alcance. Desde a primeira vez que eu postei esse trabalho no Instagram ou na primeira vez que eu expus esse trabalho aqui no Rio de Janeiro, vi que tem uma potência de atravessamento muito grande. Quando a Linn e eu resolvemos fazer a camisa, eu entendi que isso ia ser escalonado à milésima potência e estou muito feliz com essa repercussão. É algo que faz todo o sentido dentro da poética e dentro do conceito, dentro da intenção do trabalho, que é monumentalizar essa imagem de liberdade.
Como essa iniciativa repercutiu na sua carreira em termos de reconhecimento? A mensagem que tentou transmitir teve o efeito que imaginava?
É um trabalho pelo qual eu sou reconhecido geralmente. De alguma forma é uma porta de entrada para a minha poética, para a minha pesquisa e para a Pretofagia, que é como eu chamo a minha pesquisa inteira, e a Anastácia Livre faz parte desse projeto. É um ótimo trabalho para introduzir o conceito justamente porque é uma imagem de liberdade, uma imagem que tem uma boca nova. É uma pesquisa sobre nutrição de subjetividade. Eu produzo cenas, objetos, textos, imagens e esculturas que possam nutrir essa subjetividade negra de alguma forma. E quando eu falo sobre subjetividade negra é essa subjetividade coletiva. Esse imaginário coletivo que é esvaziado e alienado muitas vezes, que sofre um apagamento diário, um apagamento estrutural e um apagamento de estado também. Então tudo isso me interessa. Essa imagem encaminha essas pessoas para a Pretofagia.
Como você enxerga iniciativas, como a do Instituto Inclusartiz, na mostra “Gamboa: nossos caminhos não se cruzaram por acaso”, em que existe uma proposta de integração artística entre as pessoas que habitam ou trabalham nas redondezas do espaço expositivo? Sendo uma pessoa que trabalha na região, você sentiu que a mostra pode ajudar a fortalecer a cena artística do local?
Eu fiquei muito feliz com o convite. Eu sou nascido e criado em Olaria, na zona norte do Rio de Janeiro, mas a minha família é aqui da Gamboa, da Pequena África. Até os anos 1950 minha família morava na Rua América, no Santo Cristo. O meu tataravô foi uma das lideranças do Sindicato dos Estivadores que ainda hoje está na Praça da Harmonia. Tem uma foto dele lá dentro do sindicato, então eu tenho a minha ancestralidade fincada nesse lugar e não à toa, né? Aqui é um território portuário que recebeu muitos corpos negros escravizados, corpos africanos escravizados. É um lugar onde esses corpos chegaram e é também o lugar onde esses corpos se libertaram de alguma forma ou começam esse processo de libertação aqui no Rio de Janeiro. Eu acho que a proposta da exposição de juntar pessoas que estão aqui nesse momento, e eu mesmo moro há dez meses na Gamboa, me deixou muito lisonjeado. Foi uma grande resposta ao tempo dos meus ancestrais aqui. Eu sinto que a exposição tem uma intenção muito bonita, muito séria e gostei muito da proposta. Acho que quando o Inclusartiz, que eu considero uma instituição estrangeira, especialmente neste lugar, se propõe a fazer sua primeira exposição com os artistas da região, é de uma responsabilidade ética. E essa deve ser a diretriz da instituição.
Para você, toda arte é política?
Sim. Toda arte tem a sua agenda política, independente de quem faça.
Com relação à cena “Negrociação #1”, esperava uma mobilização tão grande de público? A que você atribui tanto sucesso para a ação?
A “Negrociação #1” é a sexta Cena Pretofágica, que são feitas desde 2019. Todas as cenas são diferentes em si em termos de texto, de tempo, de estética, mas elas são todas uma grande sequência de alguma forma. E a “Negrociação #1” foi uma cena de mobilização social ao redor da camisa da Anastácia. Então quando você me pergunta se esperava uma mobilização tão grande, para ser honesto, não esperava tanto. Eu esperava umas cinquenta, cem pessoas. Fiquei muito impressionado quando duzentas pessoas vieram, mas fez muito sentido também. Não estou querendo me gabar, mas analisando a imagem da Anastácia em si como espectador, não como artista criador, ela é uma das imagens mais importantes do nosso tempo justamente porque fala sobre um tempo de extremo passado, porém “refabulado”, atualizado dentro das nossas intenções, dentro das nossas perspectivas do presente. É uma imagem que capta e canaliza muito disso. Desde 2019 é uma imagem muito apreciada pelo movimento negro especialmente. Então eu sabia que pessoas negras estariam dispostas a comparecerem para conseguir essa camisa. É também uma imagem que virou de certa forma popular com a entrada da Linn da Quebrada (no “BBB” 22). No entanto, o mais importante para mim foi que toda essa mobilização em relação à camisa desaguou dentro de uma Cena Pretofágica. Como que as pessoas encenaram a Negrociação? Como que as pessoas encenaram essa troca? Como que a gente pode gerar momentos onde a dramaturgia social, ou seja, onde as estruturas dramáticas da sociedade podem ser quebradas, desviadas ou sofrer rupturas? Então, foi um momento de ruptura onde as pessoas pensaram que iam apenas ganhar uma camisa e elas tiveram que ler o contrato, assinar o contrato, firmar uma digital, falar no microfone, botar a língua para fora… São pequenas ações assim em sequência que geram uma comunidade ao redor da cena. E é essa comunidade do imaginário que mais me interessa. E que se entenda que houve uma partilha muito longa e intensa desse imaginário para conseguir o que se quer, que era a camisa.
Pode adiantar como pretende aproveitar os materiais provenientes da cena (a captação das bocas e vozes) e quando a obra final poderá ser vista pelo público?
Bem, essa foi a “Negrociação #1”, que eu chamei de “Minha língua está em sua boca e eu a quero de volta”. Nessa cena específica, eu captei a imagem da língua e o som das vozes das pessoas dizendo três frases: “minha língua está em sua boca e eu a quero de volta”; “minha voz está em sua garganta e eu a quero de volta” e “minha imagem está em sua memória e eu a quero de volta”. Esses registros, que foram de alguma forma a moeda de troca, serão usados em outro trabalho que eu ainda não posso revelar. E eu não posso revelar justamente porque ainda não foi pensado em termos de execução, foi pensado mais em termos de conceito. Mas vai ter a ver mais uma vez com a Anastácia especificamente. Como a gente pode dar conta de uma imagem que nunca vai ter voz ou nunca vai ter língua e agora eu tenho o acúmulo de duzentas vozes e duzentas línguas? Para mim, é um ponto de partida. Como que a gente pode trocar a ausência e o apagamento pelo acúmulo? E ainda assim a gente não vai dar conta do passado.
Conta um pouco sobre os seus próximos projetos. Tem alguma exposição em vista? No que está trabalhando no momento?
Os meus próximos projetos estão ligados mais a residências internacionais. Estou indo agora para São Paulo, mas depois vou para Nova Iorque e para a Suíça para fazer residências. Estou começando a preparar uma individual para o ano que vem e é isso. Muito axé pela frente, com certeza muitos caminhos abertos. No momento eu estou trabalhando nisso. Têm alguns trabalhos inéditos que vão sair ainda esse ano. Eu vou estar na exposição do MASP, “Histórias Brasileiras”, dentro do núcleo de retomadas que foi censurado pelo museu, mas agora foi reassumido. Estou ansioso para esse momento também. Tenho uma nova exposição no MAR e em outros lugares do Brasil também.