Editorial | Mil nomes de uma mesma urgência, por Aldones Nino
No último dia 6 de setembro, abriu ao público a 35ª Bienal de São Paulo, intitulada “Coreografias do Impossível”, com curadoria de Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel. Embora já tenha acompanhado vários textos sobre esta edição da Bienal, não tenho interesse em destacar a particularidade de uma ou outra obra em questão, como é comum neste tipo de texto. Ainda que pudesse discorrer sobre muitas das obras expostas, meu maior interesse é destacar essa coreografia que vem sendo desenhada em muitas localidades, em muitos tempos. Da mesma forma que Leda Maria Martins serve como uma importante base teórica para esta exposição, considero crucial que pensemos numa análise crítica espiralar para muitas bienais e outros eventos que ocorreram nas últimas décadas e que continuarão a ocorrer.
Ao considerarmos esta edição da Bienal, podemos notar uma convergência de interesses com edições anteriores e até mesmo com outros eventos de impacto internacional, como a Bienal de Veneza ou a documenta. Mas por que começar a analisar uma exposição levando em conta seus vínculos com outros programas expositivos além do projeto em questão? Eu acredito que as bienais e outras plataformas expositivas são muito mais do que simples apresentações de projetos alinhados com as ideias dos curadores; elas dão corpo a indícios, sintomas.
Nesse contexto, as bienais e grandes exposições assumem um papel crucial como sintomas da nossa busca por uma compreensão diante das impossibilidades. Elas se tornam espaços onde as múltiplas perspectivas culturais podem se manifestar e dialogar, desafiando as limitações impostas pelo pensamento ocidental tradicional e enriquecendo nossa apreciação da complexidade da experiência humana. O modo de pensar ocidental frequentemente molda nossa relação com o mundo, porém, tem se tornando cada vez mais perceptível que essa perspectiva não abarca a complexa realidade global. Países em conflito, nações com políticas divergentes dos ideais ocidentais e regiões onde a religião dita as normas sociais são testemunhas vivas dessa diversidade, e evidenciam que esse perspectivismo não reflete as experiências da maioria da população mundial.
Os fundamentos sociais e econômicos da modernidade utilizam quadros retóricos que servem para reafirmar uma superioridade do Ocidente (Europa – Estados Unidos) através de uma série de técnicas e estratégias em declínio nas últimas décadas, ainda que tenham imperado no século XIX e grande parte do século XX. Diante disso, existe uma movimentação que visa reunir vozes e poéticas radicalmente opostas à universalidade ocidental, quando esta é assimilada como uma perspectiva uníssona que busca dar conta da contemporaneidade.
Tradicionalmente, uma coreografia era entendida como um conjunto de movimentos e sequências que compunham uma dança, seguindo uma trilha musical. Na dança contemporânea, tudo isso já foi questionado, revisitado, abandonado e reinterpretado. No contexto da Bienal, é interessante considerar como a coreografia é uma forma de escrita originada no corpo e na pulsação da vida. O corpo, uma dimensão fundamental da experiência humana que está presente em todas as nossas interações e relações sociais, culturais e políticas. As definições corporais, por sua vez, desempenham um papel crucial na formação das identidades, uma vez que moldam a maneira como as pessoas se percebem e são percebidas pelos outros. Essas definições podem ser influenciadas por diversos fatores, como normas sociais, expectativas culturais e discursos hegemônicos. Considerando as múltiplas maneiras pelas quais o corpo é construído e vivenciado em diferentes contextos culturais e sociais, torna-se evidente a complexidade desses processos de grafia do corpo.
Os corpos estão constantemente envolvidos em uma coreografia ininterrupta, mesmo quando estão exaustos e aparentemente imóveis. Pois quando consideramos a impossibilidade de movimento de um corpo, estamos baseados em uma ideia falaciosa, já que até mesmo um corpo em repouso é incessantemente atravessado por movimentos internos que lhe conferem vida. Mesmo após a vida chegar ao fim, a movimentação de bactérias e outros seres microscópicos, invisíveis a olho nu, continuam a transformar a matéria. Podemos traçar uma conexão com os filósofos materialistas do século XVIII ou retroceder ainda mais até Heráclito, resgatando assim o movimento e a mudança como imperativos fundamentais. O movimento de um simples músculo em nosso corpo ecoa a materialidade de nossos ancestrais; dentro de cada célula que nos compõe, ressoam vestígios de pessoas que nunca conhecemos nem sabemos nomear, mas que ainda pulsam em nós.
Esta Bienal, em certa medida, apresenta várias poéticas que surgem da coreografia diante da impossibilidade, revelando o resultado tangível dos contextos e colaborações que circundam cada artista. Ainda que o pensamento seja submetido a tentativas de controle, a imaginação assume um papel fundamental, capaz de transcender as barreiras físicas, geográficas e linguísticas. A impossibilidade, nesta bienal, não é mais vista como um limitador, mas sim como um trampolim para o abandono do que já foi estabelecido e pensado. Nesta narrativa, o papel do imaginário se torna ainda mais destacado, pois é através dele que as fronteiras do possível são estendidas, permitindo que novas perspectivas e abordagens criativas surjam, desafiando as limitações impostas pelo mundo físico e pelas convenções preexistentes.
Os quatro curadores envolvidos trazem consigo uma vasta experiência nos âmbitos acadêmicos e institucionais, aspecto frequente em bienais de envergadura internacional. Tendo como ponto de partida perspectivas de filósofas negras, como Denise Ferreira da Silva, Saidiya Hartman e Leda Maria Martins, esta edição da Bienal de São Paulo canaliza a riqueza desses backgrounds em uma energia distintiva refletida nas obras expostas. Muitas das quais surgem a partir do tensionamento provocado pelo racismo, especismo, sexismo, xenofobia e outras formas de opressão. No entanto, não se limitam a essas adversidades, abrindo rotas de fuga para narrativas que transcendem a precariedade e o sofrimento em prol da germinação de mistérios que não podemos apreender em sua totalidade.
Embora eventos dessa magnitude muitas vezes estejam estreitamente ligados à lógica neoliberal, como evidenciado pelo considerável capital necessário para sua realização, e enfrentem desafios como a mercantilização da arte e a potencial marginalização de vozes alternativas em prol de agendas comerciais, é inegável que tais plataformas desempenham um papel fundamental no fomento do diálogo e interação, proporcionando encontros e intercâmbios que, em outras circunstâncias, talvez não ocorressem. Muitos dos artistas já participaram de distintas Bienais, mas reuni-los em uma cidade como São Paulo, marcada pelas limitações das conexões internas e pelos abismos socioeconômicos, representa um importante ponto de conexão da comunidade artística local com poéticas outras. Sendo capaz de materializar uma percepção dos modos pelos quais a produção contemporânea da arte brasileira está alinhada com outros movimentos globais de revisão crítica.
Talvez a maior urgência de nosso tempo seja compreender como outros tempo coexistem, como somos inundados por memórias do passado e sonhos futuros. Esta não é a primeira bienal a abordar essas questões e certamente não será a última. E ainda que criemos mil nomes, a mesma urgência continuará a ecoar nas próximas décadas: a urgência de abandonar a obliteração de outras lógicas históricas, indo além da dominação eurocêntrica e contribuindo com a descolonização epistêmica no campo da estética e da produção artística.
Aldones Nino
Assessor de Pesquisa e Projetos Curatoriais do Instituto Inclusartiz (Rio de Janeiro, Brasil) e Curador de Collegium (Arévalo, Espanha)